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It: A Coisa – O poder sobrenatural dos traumas infantis!

A nova versão de It: A Coisa é uma das melhores adaptações cinematográficas de um livro de Stephen King

Em 1986, “It”chegou nas livrarias (no Brasil, o título foi traduzido como “A Coisa”). Com mais de mil páginas, o décimo oitavo romance de Stephen King foi indicado a vários prêmios e tornou-se o livro mais vendido no ano de lançamento. Mantendo a tradição de adaptar para o cinema as obras literárias do famoso escritor, Hollywood produziu, em 1990, a primeira versão cinematográfica da história. No entanto, o resultado ficou muito aquém do esperado. Agora, vinte e sete anos depois, surge o excelente It: A Coisa (It), a adaptação definitiva do material original.

Crítica de It: A Coisa (2017).

It: A Coisa.

A história começa mostrando o desaparecimento de Georgie Denbrough (Jackson Robert Scott). Sentindo-se culpado pelo sumiço, Bill (Jaeden Lieberher), o seu irmão mais velho, passa a ser atormentado pela figura assustadora de Pennywise (Bill Skarsgård, de Atômica), um palhaço assassino. Como este também aparece para os seus amigos, o grupo parte em uma jornada para descobrir a natureza da ameaça e o verdadeiro paradeiro de Goergie. Ao longo dessa aventura, descobrirão o poder da amizade e do amor, mas também se depararão com os seus principais medos.

Roteirizado por Chase Palmer, Gary Dauberman e Cary Fukunaga (este último é o diretor da primeira temporada de True Detective), It: A Coisa contém algo que a maioria dos filmes de terror da atualidade negligenciam completamente: desenvolvimento psicológico. Com uma metragem mais extensa que a comumente vista nos exemplares do gênero, o longa não tem pressa em apresentar os personagens. Através de um medley sutil e que nunca soa meramente informativo ou preguiçoso, somos introduzidos aos dramas que monopolizam suas vidas e ao sentimento de fraternidade que compartilham (embora o número excessivo de jovens – são sete ao todo – crie um desnível de importância entre eles).

Assim, as pessoas que habitam o universo ficcional da trama não existem apenas para serem destruídos pela entidade que os persegue – convenhamos, usar apenas o jogo de gato e rato como estrutura diegética é apelar para um dos recursos de roteiro mais empregados na atualidade.  Na verdade, entre Pennywise e as crianças há uma cumplicidade narrativa e emocional que não só movimenta a história, dando a ela o seu curso natural, como também estabelece com segurança a junção entre drama e terror, dois gêneros aparentemente distintos, porém complementares.

Crítica de It: A Coisa (2017).

Logo, os momentos de apreensão e as sequências aterrorizantes não são instantes suspensos do restante da narrativa, como se tivessem sido implementados para desafogar as partes mais dramáticas ou acatar exigências de um público cada vez mais acostumado ao susto fácil e o medo compulsório. Na verdade, é exatamente o oposto. Nas cenas de terror, a intenção não é deixar o espectador apavorado, mas atrair a sua atenção – através do fascínio proveniente das ferramentas do gênero – para o fornecimento de informações sobre a psicologia dos personagens e os traumas que a acompanham. Longe de nos alienarem emocionalmente, cada uma dessas cenas possui um propósito narrativo claro e eficiente

Nessa proximidade entre o terror e a densidade dramática é que se encontra a noção conceitual nuclear de It: A Coisa. Poucas imagens simbolizam os medos infantis tão bem quanto a do palhaço (aliás, tema de um livro lançado há pouco). Portanto, o seu emprego como a figura máxima de uma narrativa caracterizada por traumas da infância é cirúrgica. Todavia, em um jogo inteligente de caracterização e descaracterização, ao mesmo que tempo que It é um símbolo em si mesmo, ele também se despersonaliza (daí o substantivo “coisa”), transformando-se em um espelho onde as suas presas refletem os próprios medos (todos são relacionados com figuras paternas), algo que, para ele, é vital que aconteça, já que se alimenta dos temores alheios. O fato de que os roteiristas dão personalidade ao vilão (juntamente com Skarsgård), mas não explicam sua origem, contribui positivamente com essa ambiguidade representativa.

Aliás, essa “ausência” de explicações se repete parcialmente nas sequências de terror, uma vez que estas são construídas de uma maneira a fazer com que o espectador deduza os receios dos personagens através das imagens e dos elementos cênicos, sempre baseado nas informações biográficas que são levemente distribuídas em instantes precisos e anteriores da narrativa. Portanto, além dos momentos expositivos não existirem abundantemente, as informações prévias são sempre potencializadas pelas coisas ilustradas posteriormente.

Crítica de It: A Coisa (2017).

A nostalgia oitentista

Isso acaba por nos trazer ao competente trabalho imagético de Andy Muschietti. Ao lado de sua equipe, ele cria uma atmosfera que mantém o suspense, mas respeita o tom fantasioso e inocente da subjetividade infantil. Nesse sentido, o filme se aproxima mais de Stranger Things do que de algo como Annabelle 2: A Criação do Mal (é sabido que Stephen King influenciou a série da Netflix e não o contrário, mas, no tom adotado pelos responsáveis, fica evidente que eles tentaram se aproveitar da fama do programa para transformar o filme em uma experiência bem-sucedida).

É muito provável que as pessoas reclamem da ausência de um terror puro em It: A Coisa, mas essa não é a intenção. O clima é muito mais fabuloso, no estilo praticado atualmente por alguém como Guillermo Del Toro, por exemplo. No entanto, ainda assim, há momentos chocantes de violência, os quais, por serem contrastados com o horror mais leve do restante da narrativa, impactam o espectador, chocando-o. Essa destreza na hora de empregar recursos cinematográficos se repete na maneira com que algumas cenas são decupadas e na realização de match cuts inspiradíssimos (o que alterna entre o sangue do banheiro para a gota de água no desenho de tinta guache é de uma sensibilidade monumental).

Com homenagens a outras obras de King e deixando em aberto o destino dos personagens,  It: A Coisa é um terror diferente daquele praticado atualmente e uma adaptação anos-luz à frente do recente A Torre Negra. Está muito mais preocupado com os dramas enfrentados pelas pessoas que habitam o seu mundo fictício e em fazer o público se importar com eles do que causar um susto passageiro. Além disso, é um dos raros casos em que a promessa de uma sequência se torna realmente importante para o espectador, uma vez que ficamos curiosos com o possível destino dos personagens. Pode parecer estranho, mas faz tempo que os filmes de verão norte-americanos não apresentam seres merecedores de nossa empatia. Felizmente, este longa não dá seguimento a essa sina.

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