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Cartas da Guerra – Filme português enFADOnho!

Filme português é tentativa fracassada de realizar nouvelle vague de guerra

O maior desafio para um crítico de cinema – embora este que vos escreve considere a si mesmo mais um palpitador do que outra coisa – é, às vezes, encontrar palavras para descrever obras que não oferecem muito material objetivo para se falar sobre. Claro que a arte não pressupõe, e nem deve, qualquer tipo de objetividade. Ao contrário, o cerne da experiência da obra é quase todo subjetivo, inefável. Mas não é porque a arte é essencialmente subjetiva, que quando um crítico – ou palpitador – não consegue encontrar palavras para descrever uma obra, esta seja de fato inefável. Muitas vezes, como é o caso de Cartas da Guerra, a obra só não oferece absolutamente nada para se falar sobre.

Crítica do filme português Cartas da Guerra

Cartas da Guerra

O filme em si não chega a ser ruim em termos de execução, mas ele é completamente vazio de conteúdo – resultado de algumas decisões equivocadas. Dirigido por Ivo M. Ferreira, trata-se de uma adaptação do conhecido romance de António Lobo Antunes, em que são reunidas um conjunto de cartas de um jovem soldado, médico e aspirante a escritor, que foram enviadas para sua esposa de Angola entre os anos de 1971 e 1973, durante a Guerra Colonial Portuguesa, um confronto de Portugal com antigas províncias ultramarinas.

Entre essas decisões equivocadas, está a decisão de adaptar, literalmente, as cartas para o filme. Quando dizemos literalmente, não estamos dizendo que as situações, conceitos ou sentimentos expressos nas cartas são adaptadas na forma de eventos. Não. Durante quase duas horas de duração, as cartas são lidas em off, e isso ocupa cerca de 90% das falas do filme.

Esse fato, em si, não chega a ser um equívoco. É uma proposta como qualquer outra. Entretanto, ela se combina com outras decisões equivocadas. Ao adaptar apenas a narração das cartas, que são quase que totalmente intimistas e dirigidas diretamente ao relacionamento entre os protagonistas, António e Maria José (Miguel Nunes e Margarida Vila-Nova, respectivamente), o filme assume pretensões de uma nouvelle vague de guerra – um conceito que precisaria de muito mais fundamento para ser trabalhado, fundamento esse que não é encontrado no filme português.

Crítica do filme português Cartas da Guerra

Escolhas equivocadas desperdiçam potenciais

A película ainda perde outra chance de prender a atenção do espectador quando, ao decidir fracassadamente emular essa noção de nouvelle vague, ir de cabeça nisso apresentando o filme em branco e preto. Um desperdício da chance de equilibrar um filme praticamente todo narrado em off, sem uma história propriamente dita, com nuances de nouvelle vague, se utilizando dos exuberantes e exóticos cenários de Angola, onde foi filmado.

Se o amigo leitor ainda não juntou as peças, vamos ser diretos então – é uma pretensa nouvelle vague, quase toda narrada em off, em branco e preto, sem uma narrativa.

O resultado final é tão brutalmente maçante que nós praticamente esquecemos, em algum ponto, que a ambientação histórica é uma das mais cruéis e estúpidas guerras que o século XX esqueceu, quando o então regime corporativista/fascista de Portugal ainda insistia em manter suas colônias ultramarinas.

Como toda guerra, a estupidez do conflito resultou em tragédias políticas e pessoais que poderiam ser muito bem exploradas em um filme. Não é o que acontece em Cartas da Guerra. Em um determinado momento, nós acreditamos estar lidando com um protagonista náugrafo, autista – ou simplesmente passando por férias forçadas.

É claro que não é nenhuma obrigação um filme que se passa em uma guerra oferecer reflexões sobre a guerra em si. O ponto é que essa é, de fato, uma das pretensões do filme – na qual ele falha miseravelmente. Não existe qualquer tipo de construção de tensão – o que é uma ironia em se tratando de, em tese, um filme de guerra – ou de qualquer tipo de envolvimento afetivo com os protagonistas.

Crítica do filme português Cartas da Guerra

Cinematografia e fotografia impedem o desastre completo

Em uma certa altura do filme, as repetidas, constantes e monocórdicas lamúrias de António pela distância de sua Margarida se tornam tão irritantes e enfadonhas, que nós realmente começamos a torcer para que bombas comecem a explodir e pessoas comecem a morrer, para ver se o filme pelo menos entretém em alguma medida – mesmo que estúpida.

O contraste fica pelo fato de que, apesar de ser um filme vazio, não condizente com suas quase duas horas de duração, ele é visualmente muito belo. Apesar do equívoco da decisão pelo branco e preto, a fotografia do filme é belíssima, e a escolha pela iluminação natural das savanas de Angola acaba funcionando muito bem – ao que parece uma contradição desse palpitador – com o branco e preto da película.

A cinematografia de João Ribeiro, e a condução técnica de Ferreira acabando dando ao filme português uma qualidade técnica considerável – o que talvez explique sua seleção para o Urso de Ouro. Mas é um fato específico que não compensa a combinação de elementos que torna o filme, como um todo, terrivelmente chato.

Cartas da Guerra é um grande desperdício, lembrando o pretensioso A Mulher Que Se Foi ou o experimental O Futuro Perfeito. O tema, a ambientação e mesmo os atores – que são competentes, mas tem um material nulo para se trabalhar com – vão ralo abaixo pela tentativa de realizar um filme art house – o que é sempre uma escolha delicada. Não foi dessa vez que nós vimos um filme português a altura de suas tradições artísticas.

Talvez, com o tempo, ao menos renda um fado.

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