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Um Estado de Liberdade – Um filme que será odiado!

Um Estado de Liberdade

Um Estado de Liberdade (Free State of Jones), filme de Gary Ross estrelado por Matthew McConaughey, é um filme complicado de se assistir e não poderia ter vindo em pior hora. Por que? Os debates sobre racismo, misoginia e questões relacionadas a direitos civis de setores historicamente desprivilegiados nunca estiveram tão inflamados na nossa sociedade e agora, após a eleição de Donald Trump, também na sociedade global. E peço desculpas ao amigo leitor, que não está interessado em ver seu cortisol subir lidando com esse assunto deveras incômodo, mas é do que trata essa película. Sendo assim, como na própria vida em sociedade, não há como escapar dessa conversa.

McConaughey interpreta Newton Knight, um soldado do exército confederado que, após ver seu sobrinho assassinado em campo de batalha, decide desertar. Na sua fuga, acaba se associando a um grupo de escravos fugitivos nos pântanos da Louisiana. Conforme sua relação com eles se desenvolve, Knight decide se posicionar – com firmeza – contra a opressão da liderança dos confederados, mas sem se aliar à União. Juntos, eles tentarão criar um estado independente, onde todos são livres e iguais.

A premissa é baseada, como diz o famoso pleonasmo, em “fatos reais”. Embora baseado em livros que relatam a história, Ross, para garantir o máximo de autenticidade a sua obra, buscou a assessoria de dois renomados historiadores americanos, Eric Foner e Martha Hodes. Não que isso fosse absolutamente necessário, pois somente a ideia do que o verdadeiro Knight realizou já seria o bastante para extrair um filme sólido. Mas o esmero de Ross em construir uma ambientação fidedigna se paga – embora não seja esteticamente surpreendente, o filme é tecnicamente correto. Cenografia, figurino e maquiagem constroem um sul norte-americano em plena Guerra Civil bastante vívido – para bem ou para mal. A caracterização de McConaughey é perfeita – literalmente, até os dentes, candidatando o ator, como é a óbvia intenção desde o início do filme, a mais um prêmio do clubinho do Oscar.

Um Estado de Liberdade

Outro destaque do filme é o elenco negro, principalmente o Moses de Mahershala Ali. O ator começa a se firmar como um dos grandes nomes afro-americanos da indústria hollywoodiana. Catapultado no universo pop de Jogos Vorazes e por séries da Netflix, como Luke Cage e House of Cards, o ator se impõe e, mesmo com um tempo de tela consideravelmente menor que McConaughey, consegue entregar uma atuação sólida e um personagem marcante que encarna – literal e figurativamente – todo o sofrimento do povo negro durante a escravidão americana. Destaque também para a Rachel de Gugu Mbatha-Raw, que não apenas é o interesse romântico de Knight, mas também oferece o contraponto contínuo do presente racismo, visto que seu envolvimento com Knight, obviamente, terá consequências sérias.

Pois bem. Depois de ciscar em terreno seguro falando sobre coisas técnicas, vamos falar sobre o elefante na sala – a narrativa em si. Esse filme será odiado. Ponto. Na verdade, já está sendo, visto que foi um fracasso de público e crítica em seu lançamento nos EUA. Não é algo surpreendente. Mesmo este colunista está pisando em ovos para escrever essa crítica e está demorando muito mais do que de costume para concluí-la. Por um motivo muito simples – nunca houve época recente tão cruel com as pessoas moderadas. Graças às mídias sociais e aos ânimos inflamados pelas convulsões sociais que permeiam o mundo civilizado nesse instante, todos acreditam piamente serem especialistas em filosofia, sociologia e ciências políticas – mesmo que sua base de informações e conhecimento formal seja o Facebook. Existe muita opinião e pouca, ou nenhuma, informação, como atestado inúmeras vezes por pessoas como Zygmunt Bauman e Pierre Lévy – que, de fato, sabem sobre o que estão falando.

E é exatamente esse o motivo pelo qual Um Estado de Liberdade será desprezado. Porque ele é historicamente correto, narrativamente moderado e esteticamente contido. O problema é que o seu tema – um homem branco que se ergue como defensor dos negros escravos e das liberdades civis dos pobres e oprimidos – não compartilha nenhuma dessas características. Não existe uma dúvida sequer na mente desse colunista que o modus operandi da imensa maioria do público será dividida em duas grandes categorias ou variações menores dentro delas:

1- Aqueles que entendem que o mundo está se tornando mais opressor do que nunca, os pejorativamente chamados social justice warriors, odiarão o filme porque mostra, mais uma vez, um homem branco sendo a “única” salvação do povo negro. Estes acharão que o filme é um retrocesso em relação à postura independente e autônoma que esses setores historicamente desprivilegiados conquistaram nas últimas décadas e que agora, mais do que nunca, veem novamente ameaçada diante do avanço do conservadorismo dos recentes governos de direita ou extrema direita eleitos no mundo ocidental. Ou pior, ameaçados por inúmeros ofensores covardemente escondidos atrás da segurança de suas telas, que defendem abertamente o racismo e a misoginia – que todos nós sabemos que existem.

Alegarão – com alguma razão – que o próprio personagem de Mahershala Ali renderia um filme só dele, sem a necessidade de exaltar um salvador branco. Em termos de comparação, seria como pegar o personagem de Brad Pitt em 12 Anos de Escravidão e torna-lo o protagonista do filme, estritamente pelas suas visões relativamente liberais para o período. O que é bastante injusto, pois as ações de Newton Knight na vida real foram muito mais objetivas – e contundentes – do que as ideias de Samuel Bass. Não que isso vá importar para as pessoas dessa categoria – afinal, o que importa é apenas a sua visão particular do mundo e das circunstâncias.

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2-Aqueles que entendem que esse filme é mais uma peça na constante – e fora de controle – marcha do vitimismo entre os setores historicamente desprivilegiados da sociedade. A história de Knight, que mostra um ex-enfermeiro, um mero coadjuvante de uma guerra muito maior, se revelando um mestre na estratégia de guerrilha militar, apenas reforça estereótipos revolucionários que são perigosos nesses tempos que vivemos, principalmente tendo como fundamento ideológico as questões relacionadas ao racismo – que os conservadores querem que todos acreditem plenamente que esse é um problema de conhecimento comum e que está sendo resolvidos aos poucos, como todo problema que quer ser resolvido a longo prazo ter que ser lidado.

Não obstante, a figura de Knight carrega ainda mais um elemento de ojeriza a esse setor conservador da sociedade. Quando começa a reunir pessoas para a sua causa, Knight começa a agir como um espécie de Robin Hood, roubando dos grandes senhores ricos de escravos e do próprio exército confederado, alegando estar apenas devolvendo aquilo pelo qual eles trabalharam, garantindo às pessoas que, dentro do seu “estado”, não haverá pobreza enquanto todos trabalharem por isso e dizendo que ali não haverá uma pessoa sequer que empobrecerá para que outros possam enriquecer. Para os inúmeros defensores do capitalismo neoliberal, que ainda insistem que esse sistema funciona, esse discurso obviamente associável ao socialismo causa calafrios nos membros que se identificam como a direita da sociedade – ou a ultradireita, ou mesmo “jênios” como os que trabalham na Veja.

A parte mais interessante disso tudo é que, em nenhum momento, o filme se posiciona ideologicamente em nenhuma dessas partes. Na verdade, é muito interessante observar que Ross, habilidosamente, não se priva de abordar visualmente essas questões muito sérias relacionadas ao racismo – e, pontualmente, a misoginia – mas sem utilizar a crueldade como espetáculo. As referências à violência brutal sofrida por negros e mulheres nesse período são mostradas de maneira sutil, valorizando a narrativa ao invés da violência pura e simples – um ponto a seu favor em comparação ao previamente referido 12 Anos de Escravidão, por exemplo.

E sim, amigo leitor, eu tenho plena consciência da utilização da violência nesse filme – meu ponto é demonstrar como cada usa o mesmo fato, de maneiras distintas, para manter a coerência das suas narrativas particulares. Ele simplesmente se utiliza de um fato histórico curioso e relevante para construir um bom filme – e que deveria propor um tema a ser racionalmente debatido, se os ânimos das pessoas em geral não estivessem tão inflamados e se todos não tivessem tantas “opiniões” e tivessem mais informação.

Um Estado de Liberdade

De um ponto de vista ou de outro, Knight será visto como uma figura revisionista, uma subversão ao típico homem sulista americano do período da Guerra Civil, como se Ross estivesse usando esse símbolo da resistência ao establishment desse período para tentar comprovar alguma tese atual – mas esse, nem de longe, é o ponto do filme. Basta pensar que, se O Patriota com Mel Gibson estivesse sendo lançado agora, ele provavelmente também seria desprezado por motivos análogos – ninguém quer lidar abertamente, parafraseando Eduardo Galeano, com as veias abertas da nossa sociedade nesse exato momento. Muito menos os americanos, diante do símbolo que a eleição de Trump representa para a sociedade norte-americana e para o mundo.

Até porque, o padrão que qualquer pessoa moderada e racional percebe hoje é que, quando obrigados a confrontar essas questões latentes na vida cotidiana na nossa sociedade e nesse ponto histórico em que estamos vivendo – como, por exemplo, assistindo um filme como Um Estado de Liberdade – a imensa maioria das pessoas, desprovidas de informação e conhecimento, simplesmente se agarrará furiosamente às suas opiniões, fazendo questão de tornar todos aqueles que discordam delas seus inimigos. Este colunista, inclusive.

O que, para concluir de forma objetiva, esse colunista entende que o exato motivo do sucesso de Um Estado de Liberdade como obra é também o motivo do que será o seu completo fracasso comercial e social – ele escolhe apenas fornecer informação na forma de arte. Ele não se posiciona ideologicamente – o que muitos, de maneira falaciosa e absolutamente injusta, dirão que é “ficar em cima do muro”. Porque, como dissemos anteriormente, nunca houve um período tão ruim para ser uma pessoa que, como Newton Knight, observa os fatos e pensa por conta própria.

Mas, até inspirados por esse filme, somos obrigados a nos perguntar: houve, um dia, algum período assim?

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