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O Silêncio do Céu – Grito sem voz!

O Silêncio do Céu

Já diziam os antigos chavões espiritualistas que cada pessoa carrega em si um universo interior. Uma vastidão de complexidades incompreensíveis ao observador externo, porém repleta de mensagens que fazem a diferença entre ser feliz e se autodestruir, entre viver e morrer, independente da condição física. Mensagens essas comuns a toda natureza humana, mas cuja leitura é possível apenas por quem as escreve. O mais essencial de nosso peito não pode ser expresso em palavras, fato que nos aproxima do conceito mundano de alma.

Há quem diga que a arte é a única forma de expressar isso que se chama de alma. E o cinema, como expressão artística que é, à parte todo o aspecto comercial, também pode dizer muito além do essencial. O Silêncio do Céu (Era Del Cielo, 2016, Marco Dutra) pode ser uma metáfora de toda essa divagação filosófica. O silêncio é a peça central. Os personagens escondem suas angústias no sigilo da mudez. O filme, sem nada dizer explicitamente, nos atinge em cheio o coração com uma espada de sentimentos e reflexões poucas vezes vistas no cinema nacional.

O Silêncio do Céu

Na história, Mario (Leonardo Sbaraglia, de Relatos Selvagens), flagra dois homens estuprando sua esposa, Diana (Carolina Dieckman), dentro de sua casa. O marido, que sofre de fobias patológicas, fica paralisado de medo e não consegue intervir para salvar a esposa. Como não foi percebido pela mulher ou pelos criminosos, Mário, afogado de culpa e vergonha, decide esconder sua covardia de Diana e espera o desabafo dela para poder ajudar como consegue. No entanto, esse desabafo não vem. Diana permanece em silêncio e nada conta sobre a violência que sofreu. Do outro lado, Mário também não consegue contar o que testemunhara, gerando um tenso e dramático jogo de silêncios, em que olhares e pequenos gestos funcionam como gritos das almas angustiadas de cada um.

O Silêncio do Céu é um dos melhores filmes brasileiros em muitos anos. Pena que, à primeira vista, não pareça um filme nacional. Todo rodado no Uruguai e falado em espanhol, o elenco e a equipe técnica se dividem entre brasileiros, uruguaios e argentinos. No entanto, não se trata de uma coprodução. Todo o investimento e criação são 100% brasileiros, o que torna esse motivo de orgulho para nossa cinegrafia. Uma obra sensível sobre as complexidades humanas, que aborda temas comuns ao público nacional, como violência, condição da mulher e questões sociais, mas sempre de maneira subjetiva e indireta, nem um pouco panfletária ou enviesada. Na verdade, eles são totalmente superados pelos verdadeiros dramas da sociedade contemporânea, como a relação íntima com cada um desses problemas.

O Silêncio do Céu

O roteiro é fantástico. Sem saber lidar com o dramático silêncio dentro de casa, Mário, após encontrar um dos estupradores espreitando novamente a esposa, decide investigar por conta própria a origem dos criminosos. O filme passa, então, a se alternar entre o drama e o suspense. Na verdade, um thriller psicológico com tintas hitchcockianas. A transição entre os gêneros é sutil, porém progressiva, proporcionando um melhor aproveitamento do mergulho do público no universo interior dos personagens. Nenhuma cena, praticamente nenhum diálogo poderia ser dispensado. Tudo corrobora na construção do conflito central da trama. O filme é baseado no livro Era del Cielo, do uruguaio Sergio Bizzio, que também assina o roteiro ao lado de Lucia Puenzo e Caetano Gotardo.

Os personagens são muito bem construídos na medida de suas complexidades. Roteiristas e diretor não optaram por saídas fáceis. Diana é mulher forte que luta contra sentimentos que são de seu exclusivo conhecimento (Medo? Culpa? Vergonha?), sem, contudo, conseguir evitar a tristeza e fragilidade no olhar. No seu papel, Carolina Dieckman talvez tenha encontrado um dos melhores trabalhos de sua carreira. Ela está perfeita em cena, conseguindo transmitir apenas com expressões corporais toda a profusão de emoções que se passa no coração da personagem. Mário é um homem que se identifica com medo  e o coloca como um rótulo sob qual encaixa todos os aspectos de sua vida. Toda sua existência é uma interminável luta contra o medo, que encontra seu ápice no enfrentamento de seu drama doméstico. Em um repente, sua luta ganha um sentido jamais esperado. Na sua pele, Leonardo Sbaraglia também brilha, embora com menos impacto que Carolina.

O Silêncio do Céu

Até o mesmo o estuprador Néstor (Chino Darín, filho do astro argentino Ricardo Darín) não se comporta como vilão padrão. Não exala maldade ou sadismo, mas sim um embrutecimento emocional de um homem solitário, cujo mundo se resume à mãe e ao trabalho pesado. Na verdade, transmite certa fragilidade que desestabiliza Mario, que, em um primeiro momento, não sabe o que fazer com a situação.  Por falar em Néstor, preste atenção em sua mãe, Malena (Mirella Pascual), mais uma personagem que muito diz, sem verbalizar.

O Silêncio do Céu é o terceiro longa-metragem dirigido por Marco Dutra, após os bem avaliados Trabalhar Cansa (2011) e Quando eu Era Vivo (2012). Assim como nos antecessores, Dutra não se utiliza apenas de um roteiro bem costurado e um elenco talentoso para se comunicar com o espectador. O filme traz uma série de simbolismos visuais que fortalecem os sentimentos dos personagens. Tome, como exemplo, na pedra que seria utilizada por Mario para salvar Diana, mas que fica o filme inteiro sobre a mesa do casal sem ser tocada. Ou nos cactos em formatos fálicos que tanto incomodam a todos. Em um filme sobre o silêncio, o som não poderia deixar de ter papel fundamental. Repare no barulho dos motores dos carros em cena, nos cantos dos pássaros, na música e nas vozes. Tudo é peça de um quebra-cabeça psicológico angustiante para construir algo que não pode ser traduzido em palavras. Observe também os cenários e as locações. A escolha por Montevidéu como palco dos acontecimentos não é gratuita. Diana é uma brasileira em terra estrangeira. Os dois principais cenários, o viveiro de plantas e a casa da família, são arquétipos da mentalidade dos personagens que neles vivem, ou que os observam de fora. Dutra foi primoroso a costurar toda essa simbologia narrativa.

O Silêncio do Céu

Os poucos defeitos da obra podem ter sido causados, talvez, pela edição. Alguns personagens coadjuvantes deixam a sensação que ficou algo por dizer, ou que teriam um mais peso em uma versão mais longa da história. Destaque para Trini (Roberto Suarez) e Nadia (Maria Mandive), amigo e ex-namorada de Mário, respectivamente. O espectador sabe que eles são importantes, porém fica sem saber muito bem por qual motivo. Elisa (Paula Cohen), também  poderia ser melhor trabalhada como muleta psicológica da amiga Diana, mas sua participação parece ter sido artificialmente reduzida, infelizmente. Situação semelhante acontece com Andrés (Álvaro Armand Ugón), o segundo estuprador, o que acaba diminuindo o impacto do desfecho que, embora não seja surpreendente, é emocionalmente eficiente.

Os problemas com a edição não comprometem o resultado final de forma relevante. O Silêncio do Céu é um filme para ser visto e revisto. Um exemplo que o cinema nacional pode ser contundente também nos dramas psicológicos, que tanto brilham nos cinemas da Argentina e do Chile. Um trabalho destoante na cinegrafia brasileira que poderia abrir portas para uma nova abordagem das relações humanas. Deveria ser premiado e reconhecido, para assim demonstrar que a identidade de um filme brasileiro não se resume a dramas sociais ou comédias chulas. Fica a expectativa para que o próximo trabalho dessa qualidade seja brasileiro também no idioma.

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