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Chocolate – Omar Sy Veste A Fantasia!

Chocolate

Rafael Padilla veio ao mundo em Havana, Cuba, em uma data incerta. Provavelmente em torno de 1868. Não se sabe com precisão, pois Padilla não nasceu como gente. Nasceu escravo. Na verdade, no que se contam os registros históricos, seu nome é meramente especulado, pois como qualquer escravo, era pouco mais do que um animal ou uma propriedade. Sua trajetória não seria diferente da de milhões de outros negros filhos de escravos espalhados pela América. Quis o destino que ele acabasse ganhando um lugar ao sol ao descobrir um talento único, mas esse lugar não era dele, afinal era negro. E na França do século XIX – e, infelizmente, em muitos lugares também do século XXI – negros não têm lugar. Por isso, as pessoas o esqueceram. Já era hora de alguém lembrar e celebrar uma trajetória assim.

Chocolate (Chocolat), filme de Roschdy Zem, conta a história de como Rafael Padilla, encarnado com maestria pelo maior ator francês da atualidade, Omar Sy, escapou de uma indigna vida como servo ao cruzar o caminho de George Footit, interpretado pelo ótimo James Thierrée, um palhaço em decadência que buscava renovação. Footit, que um dia havia sido uma estrela circense, encontrava dificuldade em renovar seu ato, considerado datado, previsível e – algo inaceitável para um palhaço – sem graça. No precário Cirque Delvaux, ele encontra Kananga, um ridículo pastiche baseado na ignorância europeia sobre os povos africanos, retratado como um “canibal violento”. Um ato banal, mas que chama a atenção dos abobalhados espectadores em busca de sensacionalismo barato – eu sei, parece que estamos falando sobre a televisão popular atual, mas ainda estamos no século XIX.

Footit, ao perceber o potencial que seu colega tem para chamar a atenção, decide cometer uma heresia – tornar Kananga o palhaço Augusto de seu ato como palhaço branco. Para o amigo leitor pouco habituado ao tema, explicamos: dentro do universo circense, existem diversos tipos de palhaço, ou “clowns”. Podem ser Brancos, Augustos, Vagabundos, Excêntricos, e por aí vai. Até o século XIX, como diria o outro, era cada um no seu quadrado, e os atos, por possuírem características próprias, não se misturavam. Footit, um palhaço branco, desesperado para evitar o oblívio de sua carreira, decide então subverter tudo o que se sabia sobre clowning até então e criar um ato onde um Branco e um Augusto pudessem existir.

Chocolate

O que ele não imaginava é que a coisa fosse tão bem. Não apenas pelo ato em si, mas pelo enorme carisma de Kananga, agora rebatizado de Chocolate. O precário Cirque Delvaux poucas vezes viu dias tão bons como os em que Footit e Chocolate atuaram juntos. E claro, como não poderia deixar de ser, chamam a atenção de figuras maiores. Não levaria muito tempo para que a hilária dupla aceitasse alçar voos maiores, dirigindo-se para Cidade-Luz, onde conquistariam o posto de maior atração do Nouveau Cirque. Para uma dupla de palhaços, é o equivalente a um jogador de futebol atuar pelo Real Madrid. Não tem para onde subir mais, mas tem para onde cair.

Por serem extremamente carismáticos e talentosos – mérito da boa direção e construção narrativa – a todo o tempo torcemos pelo sucesso dos dois. Queremos que a trajetória de Chocolat seja catártica e hilária como ele é, e esperamos Footit finalmente aceitar seu sucesso e relaxar um pouco. Mas os golpes pesados das circunstâncias de uma sociedade europeia em pleno século XIX nos deixam constantemente claro que esta não é uma história de sucesso. É uma tragédia que termina da pior forma possível – esquecida e sem significado. Ao menos naquele período.

Não há como fugir. Chocolate é essencialmente uma história sobre racismo. Sua trajetória evoca a de outros nomes, como o pintor australiano Namatjira ou Rosa Parks, pessoas que, involuntariamente, por fazer o que faziam ou ser quem eram, acabaram se tornando símbolos contra o racismo e a segregação. Zem constrói a figura de Chocolate de maneira muito sutil. Enquanto o palhaço está completamente alienado pela trinca que assola todo artista de sucesso – fama, dinheiro e mulheres – tudo está bem. O sempre tenso Footit pode até mesmo permitir que sua maior preocupação seja apenas a negligência e ostentação de seu parceiro em relação as suas posses. Mas, como todo sucesso e a fama, ilusões se desfazem tão rapidamente quanto se criam.

Chocolate

Ao ser denunciado por falta de documentos, Chocolate percebe a dura realidade – não importa quão rico ou bem-sucedido, ele sempre será apenas um negro. Perceba, amigo leitor, como essas pequenas injustiças se tornam ou têm origens em grandes crimes – Chocolate é brutalmente punido por ter cometido um crime que lhe foi imposto pelas mesmas pessoas que agora o punem: seus colonizadores. O racismo não é apenas cruel, mas também pernicioso.

Existe uma certa lógica em todo regime opressor – quanto mais você aperta, pior é a reação. A reação particular de Chocolate acontece quando ele encontra na prisão Victor (Alex Descas), um haitiano revolucionário. Ele incute em sua mente uma ideia muito simples – seu sucesso deriva de sua condição como negro. O que é um argumento extremamente inteligente, já que os palhaços Augustos são anárquicos, estabanados, o que lhes rende uma boa quantidade de cacetadas. O famoso humor pastelão.

Aqui é, no mínimo, problemático que a primeira dupla de palhaços mistos da história tenha um negro como o objeto da violência e, não cansamos de bater nessa tecla, em pleno século XIX, onde as escaras da escravidão ainda estão totalmente abertas. Zem explora ardilosamente esse aspecto da percepção de Chocolat e, após essa epifania provocada por Victor, podemos perceber a sutileza da maneira distinta como ele passa a perceber a si mesmo no palco. Não tem desculpa. O que Zem nos dá é um poderoso argumento sobre a maneira como nós nos apropriamos de conceitos como esses e, maquiavelicamente, os pervertemos. Sob o pretexto do “humor” e da “liberdade artística”, o racismo e o preconceito permanecem enraizados em nós. Será muito difícil para conservadores, aqueles que reclamam do suposto “mimimi” das minorias, digerir um filme como esse.

Chocolate

Zem, aliás, usa essa mesma liberdade a seu favor. Embora seja uma história verídica e documentada, a trajetória de Chocolat possui inúmeras lacunas. O fato do protagonista ascender ao sucesso de maneira meteórica e breve, mas da qual pouco restou, permite ao diretor preencher essas lacunas com o que as circunstâncias tinham de mais importante. Victor, o companheiro de cela de Chocolat, ser haitiano não é aleatório. Para o amigo leitor defasado em história, no período em que se passa a maior parte do filme, a década de 90 do século XIX, havia se passado apenas um século desde que o Haiti havia se tornado um parágono histórico da igualdade, ao ser palco do primeiro levante bem-sucedido de escravos negros contra senhores brancos. Não precisamos dizer qual país dominava a ilha, certo? Mais irônico ainda é o fato de que os próprios haitianos basearam seu levante em um motivo de particular orgulho para os franceses, A Declaração dos Direitos Humanos de 1789. Seria cômico, se não fosse trágico. O país que estabeleceu pela primeira vez a ideia de que “todos os homens nascem iguais” ser uma potência colonizadora. A vida de Chocolat é usada por Zem como um estandarte da hipocrisia eurocêntrica.

A busca pela auto-afirmação como indivíduo e como representante de sua raça acaba colocando o protagonista, previsivelmente, em rota de colisão até mesmo com àqueles que lhe estenderam a mão. Footit, em particular, sente-se abandonado e traído pelo amigo – aproveitamos aqui inclusive para celebrar a atuação de Thierrée, que é soberba. O bisneto de Chaplin (Sim!) dá um show ao impor a dramaticidade certa ao seu personagem, o que de maneira alguma foi um trabalho simples. Footit flutua entre momentos de realização profissional e tensão em relação as circunstâncias, mas dificilmente parece se importar com qualquer coisa que não seja diretamente relacionada a isso. Como nós não chegamos a saber o porquê de ter se tornado assim, é difícil estabelecer uma empatia com o personagem, mas através da encarnação precisa de Thierrée isso se tornar possível.

Chocolate

Falando de atuações, como não louvar Omar Sy? O ator vem de uma sequência de ótimos trabalhos, destacadamente Intocáveis, mas aqui ele se supera. Sua visão de Chocolat transita entre estilos e referências, e a maneira como o personagem transita da alegria histérica e alienada do início para a composição dura e entristecida diante da inexorável realidade. Após conhecer Victor, encontra ecos naquele que talvez seja uma das figuras tragicômicas mais conhecidas da arte, o Canio de Leoncavallo. E não é apenas pela profissão que comparamos Chocolate ao clássico Il Plagliacci, mas pelas trajetórias que são dolorosamente análogas. Entretanto, Zem decide usar um aspecto da vida real de Padilla para construir outra analogia em sua história. Apaixonado por Shakespeare desde que foi apresentado a ele por Camille (Alice de Lencquesaing), seu amor do Cirque Delvaux, Chocolat vai buscar sua emancipação interpretando ninguém menos do que o Mouro de Veneza, Othello.

O diretor e o ator começam aqui uma tour de force que não pode ser chamada por menos do que brilhante. Sy traz todo o peso do desafio para a expressão do seu personagem, enquanto a narrativa cuidadosamente impõe os obstáculos necessários para a percepção da analogia shakespeariana de Zem, tornando uma vida que realmente existiu em uma obra metalinguística, que exige do espectador uma compreensão e uma capacidade de interpretação que vai muito além do que está sendo exibido na tela.

Chocolate

O fato do primeiro palhaço negro ser aquele que também interpretará pela primeira vez o maior herói romântico d’O Bardo, que incidentalmente é negro, é tocante. Não apenas isso, mas também evoca, historicamente, o famoso processo de Whitewashing, em que atores brancos são pintados de negro para interpretar personagens dessa raça. Muitos argumentos podem ser usados para justificar historicamente essa escolha do cinema e do teatro, mas é inevitável sentir um sabor rançoso e amargo no fundo da garganta ao ser confrontado pela recepção do Othello de Chocolate na película.

Não é apenas nos aspectos superlativos em que Zem se fundamenta para exibir a história como uma obra crítica. É incrível como a figura de Marie (Clotilde Hesme) é usada para ser a Desdêmona real do personagem, enquanto a traição perfídia de Iago é percebida apenas perenemente na resistência que a sociedade ainda possui em aceitar um negro como protagonista de… bem, qualquer coisa. O resultado não poderia ser diferente. Afinal, Zem não poderia trair Shakespeare como Iago trai Othello.

Entretanto, ao contrário do cânone Shakespeareano, cujos clímax são sempre apoteóticos, o filme de Zem, Sy e Thierrée exibe, justamente no final, sua maior fraqueza. Após levantar todos esses questionamentos e tornar Chocolate potencialmente uma das maiores figuras trágicas do cinema contemporâneo, o encerramento da obra não suporta o peso de toda a sua construção. Zem acaba optando por um final rápido e um tanto banal. Embora respeite a história real de seu protagonista, faltou uma coesão maior entre o clímax do filme e seu encerramento, trazendo frustração a quem estava esperando algo mais contundente ou bem desenvolvido. Não chega a prejudicar o resto do filme, que é brilhante, mas ficamos com a sensação de que, após todo o sofrimento pelo qual passamos juntos com Footit e Chocolate, a obra não atinge todo o seu potencial.

Chocolate

É sempre doloroso, e ao mesmo tempo cativante, acompanhar uma trajetória de ascensão e queda. Quando encontra ecos na vida, o peso da realidade torna-se quase insuportável. Dificilmente, antes de assistir a Chocolate, alguém tinha conhecimento sobre sua existência. No entanto, após a sessão, dificilmente verá o mundo a sua volta da mesma forma, principalmente em relação àqueles que permanecem sofrendo por terem nascido na época “errada”, na classe “errada” ou com a cor “errada”.

Mas nem sempre é possível chorar. Às vezes, é preciso rir. Relembrando o grande momento de Canio, Vesti la Giubba – Ria, palhaço, e todos vão aplaudir! Transforme em risos o espasmo e o pranto; em uma careta, as lágrimas e a dor!

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